Inicialmente, registre-se a situação caótica em que se encontra, em todo o Brasil, o serviço de transporte de estudantes de suas residências para as escolas e vice-versa. São utilizados veículos inadequados, conduzidos por motoristas despreparados. Os motivos são os mais variados. Primeiro, porque as empresas e profissionais autônomos que prestam o serviço são mal remunerados, tanto pelos pais que contratam diretamente o serviço, como pelo Estado.
A forma como são transportados, principalmente nas regiões mais carentes, colocam os alunos em risco de morte, atentando, desta maneira, contra um dos valores fundamentais da pessoa humana, ou seja, a dignidade das crianças e adolescentes, que, sem dúvidas, são merecedoras de um transporte digno, de qualidade, com conforto e com toda segurança possível.
Neste ponto, é importante lembrarmos que a Constituição Federal estipula que todos, família, sociedade e o Estado devem colocar as crianças a salvo de qualquer forma de negligência.
Isto não acontece apenas com o transporte denominado clandestino, ou pirata. Ocorre, da mesma maneira, com os serviços ditos regulamentados, que possuem autorização ou permissão do estado para prestá-lo.
Uma das razões da situação precária em que se encontra, é a falta de uma legislação de âmbito nacional que regulamente a atividade. Não há dúvidas da importância do serviço, a ponto de o Código de Trânsito Brasileiro ter dedicado todo o capítulo XIII ao transporte escolar. Entretanto, este instrumento normativo estabeleceu exigências apenas para a circulação e condução dos veículos.
Inexiste, passados mais de vinte anos da promulgação da Constituição Federal, lei, editada pela União, estabelecendo as normas para a prestação do serviço, seja ele contratado pelos pais ou pelo poder público. Não há lei definindo a natureza do serviço, se é público ou privado. Se deve ser prestado através de autorização, permissão ou concessão. Se deve ser gratuito para todos os alunos ou não, etc. Embora a CF estabeleça, de forma clara, que os serviços de transporte coletivos são públicos, devendo. Os municípios não o encaram como serviço público, eximindo-se de sua responsabilidade.
Entretanto, há diversas leis, editadas pela União, tratando da matéria, de maneira totalmente desordenada. Em vez de regularizar, causam a maior confusão, contribuindo para a situação caótica em que se encontra o setor, além de contrariar dispositivos constitucionais. Alguns exemplos:
1o exemplo: O art. 4°, inciso VIII da Lei 9.394/96, altera, sutilmente, o disposto no art. 208, inciso VII da Carta Magna, ao incluir a palavra ‘pública’ em seu texto. Este inciso dispõe que o dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de atendimento ao educando, no ensino fundamental público, por meio de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde. A Constituição Federal não distingue se a educação e o ensino fundamental é público ou não. A seguir, os textos da Constituição Federal e da Lei 9.394/96, respectivamente:
Art. 208 da CF: O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
VII - atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.
Art. 4º da Lei 9.395/96: O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de:
VIII - atendimento ao educando, no ensino fundamental público, por meio de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde; (grifou-se)
2o exemplo: A Lei n° 10.709, de 31 de julho de 2003, em seu art. 1o, introduziu o inciso VII no art. 10 e o inciso VI no art. 11 da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (que estabelece as diretrizes e bases da educação), atribuindo, aos Estados, a incumbência de ‘assumir o transporte escolar dos alunos da rede estadual’ e, aos Municípios, de ‘assumir o transporte escolar dos alunos da rede municipal’. Porém, não há definição do que seja ‘rede estadual ou municipal’. Note-se, igualmente, que não há referência, em nenhum momento, se os alunos a serem atendidos devem residir em área rural ou urbana ou se as instituições de ensino são públicas ou privadas.
Neste aspecto, frise-se que a própria Lei 9.394/96, nos artigos 16 e seguintes, ao invés da expressão rede municipal, estabelece quais são as instituições que integram os sistemas de ensino, nos diferentes entes da federação, incluindo-se as instituições privadas:
Art. 16. O sistema federal de ensino compreende:
I - as instituições de ensino mantidas pela União;
II - as instituições de educação superior criadas e mantidas pela iniciativa privada;
III - os órgãos federais de educação.
Art. 17. Os sistemas de ensino dos Estados e do Distrito Federal compreendem:
I - as instituições de ensino mantidas, respectivamente, pelo Poder Público estadual e pelo Distrito Federal;
II - as instituições de educação superior mantidas pelo Poder Público municipal;
III - as instituições de ensino fundamental e médio criadas e mantidas pela iniciativa privada;
IV - os órgãos de educação estaduais e do Distrito Federal, respectivamente.
Parágrafo único. No Distrito Federal, as instituições de educação infantil, criadas e mantidas pela iniciativa privada, integram seu sistema de ensino.
Art. 18. Os sistemas municipais de ensino compreendem:
I - as instituições do ensino fundamental, médio e de educação infantil mantidas pelo Poder Público municipal;
II - as instituições de educação infantil criadas e mantidas pela iniciativa privada;
III – os órgãos municipais de educação.
Art. 19. As instituições de ensino dos diferentes níveis classificam-se nas seguintes categorias administrativas:
I - públicas, assim entendidas as criadas ou incorporadas, mantidas e administradas pelo Poder Público;
II - privadas, assim entendidas as mantidas e administradas por pessoas físicas ou jurídicas de direito privado.
Art. 20. As instituições privadas de ensino se enquadrarão nas seguintes categorias:
I - particulares em sentido estrito, assim entendidas as que são instituídas e mantidas por uma ou mais pessoas físicas ou jurídicas de direito privado que não apresentem as características dos incisos abaixo;
II - comunitárias, assim entendidas as que são instituídas por grupos de pessoas físicas ou por uma ou mais pessoas jurídicas, inclusive cooperativas de professores e alunos que incluam na sua entidade mantenedora representantes da comunidade;
II – comunitárias, assim entendidas as que são instituídas por grupos de pessoas físicas ou por uma ou mais pessoas jurídicas, inclusive cooperativas de pais, professores e alunos, que incluam em sua entidade mantenedora representantes da comunidade;
III - confessionais, assim entendidas as que são instituídas por grupos de pessoas físicas ou por uma ou mais pessoas jurídicas que atendem a orientação confessional e ideologia específicas e ao disposto no inciso anterior;
IV - filantrópicas, na forma da lei. (grifos nossos)
3o exemplo: O art. 2o da Lei 10.880, de 9 de junho de 2004, com redação dada pela Medida Provisória n° 455 de 2009, instituiu o PNATE – Programa Nacional de Apoio ao Transporte do Escolar, que tem como objetivo prestar assistência financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, em caráter suplementar, para que possam oferecer transporte escolar aos alunos da educação básica pública, residentes em área rural.
Estes são apenas alguns exemplos de que a prestação do serviço de transporte escolar não está bem definido, como deveria, residindo, neste ponto, em grande parte, os problemas que o setor enfrenta e a origem da insegurança e da qualidade deficiente do serviço.
As legislações estaduais e municipais criaram mais confusão ainda. Interpretam que o inciso I do art. 30 da Carta Magna, ao atribuir competência aos municípios para legislar sobre assuntos de interesse local, podem também legislar sobre transporte escolar, que é espécie do gênero transporte de passageiros, modalidade de transporte coletivo. O que é um grande equívoco, por parte dos legisladores.
A competência dos municípios, na área de transporte coletivo, está prevista e restrita ao disposto no art. 30, inciso V, ou seja, ‘organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial.
Verifica-se que neste inciso V foi feita o destaque ‘incluído o de transporte coletivo’, enquanto que no inciso I não foi, significando, desta forma, que o município não pode legislar sobre transporte, não estando incluso, portanto, entre os assuntos de interesse local, para os quais o município pode legislar, a não ser no sentido de organizá-lo e sobre a prestação do serviço propriamente dito. Até porque a competência para legislar sobre transporte é privativa da União.
Como exemplo da confusão, alguns municípios tratam o transporte escolar como privado, como em São Paulo, outros como público, como ocorre em Belo Horizonte. Mesmo em alguns que o consideram público, não é exigida a licitação, conforme determinação do art. 175 da Constituição do Brasil. Não se deve esquecer que compete aos municípios apenas organizar e prestar o serviço. Mas não legislar. Estabelecer regras desta natureza fogem à competência municipal.
No caso de Brasília, a situação é mais complicada ainda. Os deputados distritais, que sempre tiveram o transporte de passageiros refém de suas leis (alternativo, táxi), sempre tentaram, mas nunca conseguiram, ter o transporte escolar em suas mãos, graças ao trabalho desenvolvido pelo Sindicato da classe. Editaram leis absurdas, revogaram e até repristinaram, num fato inédito na Capital da República. Tudo no sentido de angariar preciosos votos da categoria. Em vão.
Diante desta situação, é necessário, urgentemente, que a União edite uma Lei regulamentando a atividade em todo o território nacional. Assumindo, de vez, a responsabilidade por um setor fundamental na efetivação do direito à educação.
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.